Eu tinha 8 anos quando ele morreu, mas somente uns 2 anos depois que fui saber quem ele foi, sua música e seu fim. Minha irmã é 4 anos e meio mais velha que eu. Dividimos o mesmo quarto desde o momento que voltei da maternidade até a vida adulta. Por isso era inevitável que tudo o que ela consumia de música, programas de tv e filmes, eu iria consumir de tabela.

Até porquê eu idolatrava a minha irmã. Ela ainda é minha ídola, mas para a pequena Aline, o que irmã mais velha fazia era a coisa mais legal do mundo. Minha irmã, do outro lado, se irritava com o meu fandom. Ela queria privacidade pra falar das coisas de adolescente dela com as amigas ou ficar cantando Bon Jovi por horas na frente do espelho.

Ali no inicinho da sua adolescência, minha irmã descobriu o Nirvana. Na época, a única maneira de se ler artigos, novidades ou de se ter acesso a qualquer informação de alguém era por meio de revistas e jornais. Eu lembro que ela ia numas bancas de jornais específicas pra comprar umas revistas importadas de música. Mais especificamente de rock. O único meio de comunicação não impresso, tirando o rádio, era a falecida MTV. Lembro que estava passando um especial sobre o Kurt que falava um pouco sobre sua história.

Minha irmã me explicou que ele tinha sofrido um suicídio e que ele sofria de uma doença mental chamada Transtorno Maníaco-Depressivo. Eu absorvi profundamente aquilo tudo, porque me impactou o fato de alguém sofrer algo tão sério a ponto de tirar a própria vida. Eu olhava pra televisão e o via incrível com sua banda, com sua filha no colo sorrindo e, em outras cenas, completamente derrotado usando óculos escuros. Eu estava fascinada com apenas 10 anos de idade.

Passaram 4 anos e perdi meu padrinho pro suicídio. Sei que tem meme falando que ninguém nunca mais vê os padrinhos depois do próprio batizado, mas a minha relação com ele era totalmente diferente. Ele foi extremamente presente, carinhoso, atencioso e me dava presentes incríveis. Foi na morte dele que tive minha primeira crise depressiva. Foi na brutalidade da morte dele que o meu transtorno se tornou aparente.

Isso foi em 2001 e todos à minha volta decidiram que o melhor a fazer era não falar sobre isso, colocar debaixo do tapete. Eu estava perdida, cheia de perguntas, me sentindo culpada e com muita dor. Eu entendo que ninguém sabe lidar com isso de maneira intuitiva hoje em dia, quanto mais naquela época. Mas quando penso em mim nesses anos e tudo o que aconteceu depois na minha vida, vejo vários traumas que poderiam ter sido evitados se simplesmente alguém tivesse me acolhido com algumas palavras.

Nesse meio tempo eu estava na internet, assim como todos, e lembro do momento que a psiquiatria mudou a nomenclatura do transtorno para Transtorno Bipolar. Lembro do filme As Horas, sobre Virginia Woolf, e quando vi que ela era bipolar, automaticamente pensei “assim como o Kurt”. E assim foi com todos os outros que tive conhecimento. A minha referência sempre foi o Kurt. E só hoje, com 37 anos eu entendo o meu fascínio por ele e o como a falta de informação correta sobre o meu transtorno e sobre suicídio contribuíram intensamente para que esse fascínio me deixasse mais perdida me levando pro caminho mais errado possível.

Começo essa explicação falando que, para mim, o Kurt Cobain foi um artista. Mas artista mesmo, que criou arte. Você consegue sentir todas emoções e sentimentos dele nas músicas. Seja tristeza, dor ou até mesmo euforia ou agressividade. Isso sempre me encantou como músicas de ninar para um bebê. Cresci escutando sua voz e as músicas foram mudando de significado conforme fui crescendo. Hoje sei que fui uma criança bipolar e que aqueles pensamentos obscuros e de morte estavam dentro do meu cérebro por causa da bipolaridade. (Por favor, tenham conversas profundas com as crianças. Isso pode ajudar muito na descoberta de um transtorno “silencioso”). E comecei a gostar de música deprê desde muito nova. Nirvana era uma das bandas.

Por eu achar o Kurt incrível, sua morte me impactou profundamente. Foi a primeira morte de uma pessoa jovem, bonita, bem sucedida, com um talento inacreditável que vivi. Se tivesse sido um acidente, não teria causado o mesmo impacto. E além do suicídio, eu lembro que rolou uma estigmatização massiva da doença Maníaca-Depressiva. E o único pensamento que eu tinha era: “que eu nunca tenha isso”.

Porém, quando recebi meu diagnóstico de uma maneira bem não profissional, a primeira coisa que passou pela minha cabeça, ainda sentada no consultório, em frente à psiquiatra foi “caralho, que nem o Kurt. eu sabia que esse dia ia chegar”.

Desde o suicídio do meu padrinho, eu tinha certeza que eu ia receber um diagnóstico psiquiatrico em algum ponto da minha vida. Eu sabia que não era normal pensar na minha própria morte ou na dos outros à minha volta daquela maneira. Eu não tinha a menor aspiração pra nada. Passei minha adolescência e início da vida adulta nadando conforme a correnteza. Não tinha sonhos profissionais, não tinha sonhos pessoais. Eu só ia existindo. Não é que eu pensava que eu ia morrer jovem, mas não conseguia imaginar o que iria me fazer feliz e realizada, porque eu me via como uma falha, um peso e uma incapaz.

Foi libertador saber o meu diagnóstico. Passei por todas as fases de luto. Mas o que quase acabou comigo foi não dar o cuidado necessário e não enxergar a potência do que sofro. A sensação é que me tornei um carro desgovernado e que fui batendo em vários lugares e que no final me joguei de um precipício. 

Não existe lado positivo de escolher tirar a própria vida. Antes, durante e, sendo socorrida, o depois, se tornam o pior trauma da sua existência.São tantos sentimentos horríveis e degradantes. Eu escolhi viver, eu escolhi amar as pessoas que estavam me salvando, mas ainda assim me sinto culpada, podre, quebrada e com medo. Até hoje.

Depois de dezembro de 2019, Kurt Cobain ganhou outro significado pra mim. Hoje eu lamento que ele não conseguiu chegar onde eu cheguei. Escuto suas músicas de vez em quando, porque elas me pegam muito. Principalmente a Lithium, que só fui absorver 100% quando fiquei estável. Penso na sua família, princiapalmente na sua filha Frances e na Courtney, que a mídia machista e patriarcal culpou, acusando de assassinato. Mas sorrio quando penso no Dave Grohl, que pega suas dores e perdas e faz arte.

É isso, eu escolhi ser Dave Grohl.